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20 outubro 2006

Um novo 'velho' debate

Um filme que "parece estar revolucionando" a forma como olhamos a realidade está presente em meus pensamentos. Este filme é "Quem somos nós"(ler a resenha no Omelete) . Ainda não o vi, mas os comentários que li e ouvi sobre ele me indicam que se trata de mais uma obra "confusionista", pois tenta traçar paralelos entre ciência e religião que, apesar de serem paralelos, caminham no sentido de alcançar uma união entre as duas.
Fiquei provocado por está tentativa original e recorri a um dos meus confortos: "Materialismo e Empiriocriticismo", livro escrito pelo revolucionário russo Lênin, entre 1905 e 1907. Este livro tem como subtítulo: "Notas Críticas sobre uma Filosofia Reacionária", pois surgiu da necessidade de dar o combate dentro do partido bolchevique à filosofia do empiriocriticismo que, segundo seus autores, promovia a superação da oposição entre o materialismo e o idealismo através da "experiência pura". Para os empiriocriticistas, as coisas constituem "complexos de sensações", ou seja, a realidade não é aquilo que existe independente de nós, mas que era criada por tais complexos. Quem primeiro propôs tal filosofia foi o Físico e Filósofo Ernest Mach, importante pesquisador na área de acústica e óptica, daí o termo "machismo" amplamente usada na obra de Lenin.
Em "Materialismo e Empiriocriticismo", Lenin demonstra ponto a ponto o caráter reacionário do machismo, recorrendo à obra do Bispo George Berkeley, para mostrar como Mach "criou um berkeleyanismo original". Para Lenin, o empiriocritismo consegue fazer uma confusão geral sobre as bases da divergência entre materialismo e idealismo ao não estabelecer como e onde surgem os "complexos de sensação". A confusão criada por Mach e seus discípulos oscila entre as posições filosóficas antagônicas, pegando ora elementos do materialismo espontâneo proveniente dos cientistas naturais, ora defendendo concepções do idealismo, prevalendo sobre este último.
Um importante capítulo do livro de Lenin fala sobre a "crise da Física", como ficou conhecido o período das intensas descobertas sobre a eletricidade e radioatividade, no fim do século XIX. Neste período, importantes físicos deram sobre sua opinião a respeito do desparecimento da matéria. A confusão estava instalada pela verificação experimental do constituinte básico da matéria: o átomo. É desta época o modelo atômico de Rutherford, que afirmava que o átomo era constituído por partículas positivas ao centro e por partículas negativas que orbitavam o centro. Nos processos de radiação, Marie Curie (e seu esposo Pierre Curie) verificaram que da emissão de um elétron por um átomo de urânio era possível a obtenção de um átomo de hélio.
A conclusão a que chegaram os "filósofos professorais"(expressão de Lenin) foi a de que a matéria "havia desaparecido", necessitando-se, portanto, de uma filosofia que fosse ao encontro da derrocada das "consagradas leis da Física", ou seja, a lei da conservação da energia e a lei da conservação da massa. No entanto, o que faltava para estes "sábios professores" era um pouco mais de conhecimento sobre a dialética. Neste aspecto, Lenin não tem dúvidas do total desconhecimento por parte dos alarmistas ao afirmar que o mínimo de conhecimento da dialética colocaria a questão de outra forma, ou seja, da comprovação da teoria que explica a realidade em termos daquilo que nos é dado pelo mundo exterior: o materialismo dialético. Ao afirmar isto, Lenin mostra que os machistas nada entenderam da incompatibilidade entre materialismo e idealismo, pois não responderam desta forma a questão crucial: o que vem primeiro a matéria ou a idéia? E ao não responder isto, os machistas criam uma filosofia do absurdo, dizendo que a "matéria desapareceu"(Ipsis literis, inclusive). Lenin destaca: "o conceito de matéria, como dissemos, não significa senão isto: a realidade objetiva que existe independentemente da consciência huma e que é refletida por ela"(p198).
Na evolução subsequente da Física, Paul Dirac intensifica os estudos sobre as antipartículas, que nos possibilitam uma interpretação materialista tal como Lenin apontava: "o materialismo dialético insiste no caráter temporário, relativo, aproximativo, de todos estes marcos do conhecimento da natureza pela ciência humana em progresso. O elétron é tão inesgotável como o átomo, a natureza é infinita, mas ela existe infinitamente, e este reconhecimento, o único categórico, o único incondicional, da sua existência fora da consciência e da sensação do homem é que distingue o materialismo dialético do agnosticismo relativista e do idealismo"(p199).

Bem... acho que abusei um pouco. Apenas queria mostrar que este filme (não o vi ainda) parece trazer estes questionamentos a um número bem maior de pessoas* que os trabalhos dos empiriocriticistas criticados por Lenin. Resta-nos assistir pacientemente e trazer "novidades" neste diário.

*Sobre isto, lembrei de algo: tenho que conversar com o Chan sobre a questão do aumento da "criação de mitos" com o surgimento da imprensa, debate apresentado por Marx. Acho que isto pode ajudar.

Referências

Quem Somos Nós?
(What The Bleep do we Know?, 2005)
Gênero: Documentário
Duração: 108 minutos
Pais: EUA
Ano: 2005
Distribuidora: PlayArte
Diretor: Betsy Chasse , Mark Vicente , William Arntz
Elenco: Barry Newman , Elaine Hendrix , Marlee Matlin , Robert Bailey Jr.
Site oficial

LENIN, V.I. Materialismo e Empiriocriticismo. Edições Progresso - Editorial "Avante!". Moscou-Lisboa: 1982.

3 comentários:

  1. wow, muito bom texto! bem elucidativo! voltarei mais vezes para encontrar textos parecidos! Colocarei também teu link lá no Catatau, ok?

    abração,

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  2. olá:
    o filme toca na questão da física quântica... e como a matéria seria quase um pontilismo distorcido pelo que hume chamaria força do hábito como os corpos que vemos. mas o que mais me incomoda em toda essa discussão é que ao considerar-se a apreensão da realidade (ou como algo externo que jamais alcançaremos em totalidade, ou como percepção -- o mundo, nós o inventamos) deve-se pensar historicamente -- o bebê primata, não é o bebê do século xxi, pois pensar em origem estruturalmente é tarefa vã...

    é óbvio para mim que o mundo é o lidar do animal sapiens com o que o cerca... e cada vez mais acredito em idéias/imaginação (vico) que se materializam... como energia que foi (estado de pontilismo quântico?) potencial ( o design, uma visão do mundo) que se materializa -- as consequencias tocam na sociedade do espetáculo de debord... uma dica para seus mitos da mídia. assim é que, às vezes, é melhor fazer uma canção.

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  3. Fico humedecido ao ler tanto que nada diz, mas entenda, não passa de força do hábito...

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